16 de outubro de 2011

Lisístrata ou Porque falar das mulheres*

O tema talvez tenha um cheiro de mofo. Na era da informação ultrarápida, não se fala mais em tópicos com mais de dois anos de vida. Um fato recente relacionado a este post é que finalmente adquiri meu exemplar do livro “Zoé-Zoé - Mulheres do Planeta“ - por inacreditáveis R$3, em uma liquidação. Por outro lado, a discussão que ele provoca é sempre atual. Para minha estreia por essas bandas, achei interessante construir um statement post. Por que, em uma sociedade pós-moderna, ainda é importante pensar a questão de gênero? 

Titouan Lamazou é artista cidadão do mundo. Nascido no Marrocos e criado na França, abandonou este país e os estudos de arte aos 17 anos para se lançar ao mar. Encontrou na vela sua segunda paixão; foi membro da tripulação de Yvon Fauconnier e, depois, de Éric Tabarly. No entanto, sua consagração veio na navegação solitária, ao ser o primeiro vencedor do Vendée Globe, competição em que os velejadores fazem a volta ao mundo, sozinhos, sem escalas. Acumulou premiações em campeonatos de vela. Ao longo do tempo, foi perdendo o entusiasmo por competições e decidiu retornar à sua primeira paixão, a arte, sem, contudo, abandonar as viagens. Continuou peregrinando pelo globo terrestre, agora acompanhado de cadernos de rascunhos e anotações, lápis, pincéis e tintas. Foi então que começou a publicar seus “Carnets de Voyage”. No início dos anos 2000, deu início a seu mais conhecido e ambicioso projeto: construir um retrato multimídia da condição feminina ao redor do mundo. 

O projeto, intitulado “Zoé-Zoé - Mulheres do Planeta” (Zoé é o nome de sua filha), deu origem a uma exposição que foi recorde de visitação, ironicamente, no Musée de l'Homme (Museu do Homem, em tradução literal; o termo "homem" ainda é utilizado como metáfora para "humanidade", a despeito de as mulheres representarem cerca de metade dos seres que a compõem). A exposição esteve na Oca, Em São Paulo, em 2009, onde também foi sucesso de público, e apresenta as modelos de Lamazou em fotografia, desenho, pintura, texto e vídeo. Aqui embaixo está um trecho do vídeo de Tiane, a carioca "cinderela do lixão", e o de Doreen da Palestina (áudio em francês, em todo caso só as imagens já valem). 



A partir dos registros feitos por Lamazou foi editado o livro que leva o nome do projeto, do qual tenho um exemplar em minhas mãos neste momento, além de outros títulos que destacam personagens de determinadas regiões ou aspectos específicos da condição da mulher, como os livros “Femmes du Brésil” (da índia do Xingu, passando pelas vaqueiras do sertão nordestino, a quilombola, a carioca que trabalha no lixão, a atriz popular, até a modelo paulista; são 19 brasileiras retratadas) e Sauf Ma Mère ("Exceto minha mãe" em tradução literal, sobre a erotização do corpo feminino). 

Lamazou foi nomeado pela ONU como Artista pela Paz, apadrinha Lysistrata, associação internacional de defesa dos direitos das mulheres. Em 2009, ele participou do Roda Viva, na Rede Cultura. Sua entrevista é interessantíssima, apesar dos pesares, e pode ser conferida nesta lista de reprodução no YouTube

Contei tudo isso para mostrar a conclusão à qual chegou Titouan, depois de anos na jornada: 

"As grandes civilizações, neste mundo, possuem ao menos um ponto em comum não acordado, que deveria aproximá-las: a opressão das mulheres como corolário da divisão da humanidade em dois gêneros distintos, privilegiando o masculino em detrimento do feminino. A velha civilização chinesa, não foi ela fundada sobre um ditado atribuído ao grande timoneiro do passado, o venerável Confúcio: 'a ausência de talento em uma mulher é uma virtude...'? As outras civilizações nada tem a invejá-lo, exceto algumas microssociedades igualitárias ou matriarcais, facilmente qualificadas como primitivas ou 'primievas', e até mesmo como selvagens em outros tempos." 

Ou seja, TODOS os grupos possuem mecanismos de opressão às mulheres, ainda que em graus diferentes, mais ou menos explícitos. Não é um assunto apenas do Oriente Médio, ou da África, mas de todos. Lamazou relata que, em diversos movimentos de defesa dos direitos das mulheres pelo mundo, há medo entre as ativistas ante a um retrocesso radical da sociedade. 

Em Gulu, Uganda, o artista encontrou Mama Rose, uma religiosa que presta auxílio à vítimas do LRA (Lord's Resistance Army, Exército de resistência do Senhor), antigo grupo terrorista de caráter político-religioso que comete inúmeras atrocidades em suas atividades em Uganda e em países vizinhos. Atacam vilarejos e aldeias, praticando assassinatos e roubos. Crianças são raptadas e obrigadas a carregar o produto dos roubos para os acampamentos nas florestas. Nunca mais retornam para suas famílias. Os meninos começam a ser treinados para serem "soldados de Deus", as meninas "bonitas" são oferecidas como esposas para os combatentes, as "feias" são descartadas. Nenhuma semelhança com a tão proclamada sociedade civilizada e igualitária? 

Zanouba, refugiada sudanesa, costumava se levantar às cinco da manhã, enquanto o marido só saía da cama quatro horas depois, com a tenda limpa, o filho alimentado e a comida pronta. No acampamento onde vive, em Camarões, as mulheres são responsáveis por todo o serviço doméstico e por todo o trabalho braçal, caminhando por horas sob o sol, restando aos homens a tarefa de se reunir sob a sombra de um arbusto para discutir política. As mulheres são excluídas dessas discussões. 

Cathy, advogada no Congo, trabalha pela defesa das mulheres vítimas de violência sexual. As mulheres que passam por esse trauma muitas vezes adquirem doenças ou ficam feridas, não tem a assintência necessária, são abandonadas pela família ou pelos maridos, os agressores raramente são punidos. Ou eles não são denunciados, por medo e vergonha, ou "justificam" suas ações. No Congo há uma crença (bem conveniente para os trogloditas) de que o estupro de uma mulher na menopausa ou de uma virgem imuniza contra a AIDS. No dia em que Lamazou acompanhava Cathy, chegavam para acolhimento duas mulheres, avó e neta, que iam juntas trabalhar quando foram agredidas, e agora não podem voltar para casa. Elas proporcionaram imunização em dose dupla. Há sempre o estigma de que mulher estuprada de alguma maneira "provocou" o estupro, é "merecedora" dele ou até mesmo, como no Brasil, "sortuda". 

Na China, nação aclamada por parte da mídia brasileira como exemplo de crescimento econômico, Wang Yue, membro da primeira banda punk chinesa exclusivamente feminina, afirma:"Os roqueiros daqui, sabe como é, eles cantam canções de amor e tocam legal, mas querem ter uma mulherzinha em casa e várias namoradas na rua, são machistas como os outros. Pode até ter caras legais no meio desses, mas eu nunca encontrei nenhum. Os chineses não gostam de nós de verdade." 

Elmas, cigana rrom que vive na Turquia, conta que, aos 13 anos, seu pai desejava que ela interrompesse os estudos para se casar. Que garotas que estudam são muito mal vistas. Foi necessária a intervenção de um vizinho, que se tornou uma espécie de segundo pai, para que ela pudesse seguir estudando, se fixasse em Istambul e se tornasse diretora de cinema. 

Xiomara, artista de circo venezuelana, foi rejeitada pelo pai branco porque sua mãe é negra, sofreu agressões do padrasto violento. Kobra, no Afeganistão, comenta que por lá o regime talibã proibiu as mulheres da cidade de trabalhar, mas ninguém lembrou das mulheres do campo. Ana, na Bulgária, com cabelos tingidos e lentes de contatos azuis, acredita que a beleza "é ser 80% loira", e é isso que pensa seu noivo. 

Enfim, as histórias são muitas, e vale a pena conferir no livro o comovente registro de cada uma das 54 mulheres entrevistadas. Não é difícil enxergar analogias entre estas situações e casos próximos de nós. Negação de direitos, objetificação, agressões físicas, atividade intelectual negligenciada, sexualidade marginalizada, preconceito racial, preconceito de origem, machismo hipócrita, pouca representação política. 

No Brasil, as mulheres são apenas 10% do Congresso Nacional (apesar de termos eleito uma presidenta antes da maioria dos países desenvolvidos). Há os que achem que estupro é motivo de piada, que assédio sexual deveria ser motivo de orgulho para a mulher que o sofre, que homens são isso e mulheres são aquilo, que defendem idéias prontas mais mofadas que este post. 
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*Milena Mota (@myllennah) estuda moda, pinta, atua, toca piano e fotografa. A partir deste post começa uma nova empreitada como colunista quinzenal do PCdeBolso. Aqui ela vai discutir assuntos femininos e feministas.

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