Antes que eu me esqueça, sobre o blog da Bethânia

Foto: Reprodução

Antes de qualquer coisa, declaro total respeito à artista e intérprete Maria Bethânia. Total respeito à sua intenção e capacidade de elevar o patamar cultural do Brasil acima da trinca carnaval, futebol e caipirinha que a mídia perpetua diariamente como definidora da nossa identidade. Todo o meu respeito à sua erudição, ao talento capaz de comover centenas de brasileiros, homens e mulheres, pelo poder da palavra, seja falada sobre o silêncio ou embalada por melodia. Por todo este respeito declarado é que faço coro com os que sentiram-se ofendidos, com a opção da artista em recorrer à Lei Rouanet para desenvolver seu novo trabalho, o blog O Mundo Precisa de Poesia que, resumidamente, consistirá em um veículo na web com o registro de 365 vídeos de poesia dos maiores escritores da língua portuguesa, declamados por ela, com direção do cineasta Andrucha Waddington.

Me pergunto se realmente uma artista de tamanha importância como Maria Bethânia não conseguiria, sem a ajuda do governo, apoio para o desenvolvimento de qualquer projeto que idealizasse. Não seria com muito gosto que empresas e multinacionais atualmente ligariam seus nomes à figura da cantora baiana e sua intenção genuína de "invadir a internet com lirismo?" No entanto, o buraco da ofensa é mais embaixo. O blog O Mundo Precisa de Poesia custará 1,3 milhão de reais, valor justificado em detalhes na descrição dos gastos, inclusive no valor de 600 mil reais destinado à diretora artística do projeto, a própria Maria Bethânia. O Ministério da Cultura, diferente de mim e parte dos brasileiros, não se ofendeu com a soma destinada ao projeto. Minto. Inicialmente o projeto teria o custo de 1,8 milhão, esse valor sim chocou o Ministério da Cultura, que subtraiu cerca de 500 mil e autorizou que o valor restante seja captado através de renúncia fiscal.

Vamos descer mais um pouco na ofensa. Um milhão e trezentos mil reais arrecadados através de renúncia fiscal para um blog, é um valor que não será pago em impostos pelas empresas patrocinadoras. Logo, não vão para os cofres públicos, nem atender outras prioridades do nosso país, que historicamente sofre quando se fala em saúde e educação, por exemplo. Mas nem é por aí que me sinto ofendido. Já que é uma grana relacionada à cultura, fico pensando nas centenas de pequenos artistas brasileiros, sejam cineastas, cantores ou grupos de atores que desenvolvem trabalhos de fôlego, perseguem sonhos artísticos próprios, cumprem todos os detalhados parâmetros para apresentação de um projeto pleiteando a arrecadação via Lei Rouanet e que por fim recebem incontáveis nãos. Artistas que empolgados em viver de sua própria arte, trabalham na construção de suas carreiras e na reconstrução da realidade brasileira, mas que sem uma aprovação, prorrogam a realização do novo, por prazo indeterminado. Artistas que inspirados na própria obra de Maria Bethânia, atualmente vêm nas leis de incentivo a única possibilidade de arrecadar grana - essa bendita que move todas as coisas em nosso sistema - para poder realizar seu trabalho de maneira plena, mas que na hora H não conseguem a autorização para arrecadar um terço do que a cantora conseguiu. É aí que a ofensa atinge o seu nível mais baixo: Maria Bethânia - blog - 1,3 milhão X centenas de outros artistas - milhares de outros interessantes trabalhos - muito menos que 1,3 milhão.

Provavelmente a partir de junho, data prevista de lançamento dos primeiros vídeos, eu faça aqui elogios ao projeto de Maria Bethânia. Não sei, talvez ela consiga "encher a internet de poesia" brasileira de uma maneira nunca antes vista, de verdade. Não duvido que seus 365 vídeos serão pequenas obras de extrema qualidade artística. Porém, todo e qualquer elogio estará devidamente marcado pela ofensa, proferida por uma grande artista, tão grande que parece que perdeu de vista os outros ao seu redor. Outros que realmente precisam da ajuda do governo para fazer sua arte e efervescer nossa cultura.